sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

"Alice afastou com delicadeza a mecha de cabelo que lhe perturbava. Quando já estava cansada de levar a mão nos fios que já estavam ficando oleosos, assoprava para que tomasse distância e retornassem ao rosto como um vendedor insistente. Os fios, de um alaranjado-claro artificial, lisos, perturbavam um rosto calmo, um rosto apático. A impressão de calma nada mais era do que um disfarce de um rosto deprimido. Uma depressão com certa personalidade. Com certa intimidade. E perguntava-se, por que não nascera Isabel? Por que a vida lhe destinara ser Alice? Por que a vida lhe destinara tudo aquilo que ela não pedira? Um corpo magrelo, apático. Um olhar triste, e ao mesmo tempo penetrante. Um olhar apático. Considerava-se a pessoa mais apática que já existira. Talvez só perdesse o posto para o feirante de domingo. Um feirante, um rosto, um bigode. Uma barraca de laranjas amarelas. Nada mais era do que aquilo. Ninguém o obrigava a ser. Ninguém o obrigava a ser um homem. Não era nada convencional. Até o sol resolvera ser cruel com Alice. Desde que o verão se iniciara, sua pele havia adquirido manchas vermelhas de queimadura. E mais do que nunca ela desejara ser como Madalena. A médica de pele morena. A médica de vida morna e voz suave. As pernas inquietas do banco ao lado demonstravam impaciência. Com um sorriso esquálido, Alice quase deixava a língua lhe vencer os dentes e pedir para que a pessoa se aquietasse. Ah, malditas pernas, ela pensava. Mais um minuto ali a enlouqueceria. Desejava mais do que nunca estar em casa. Não ter de passar por tudo aquilo. Mas sua casa lhe perturbaria, também. Estava se tornando uma garota chata, ranzinza. Tudo lhe incomodava. Não era mais a mesma de alguns tempos atrás. Mas quem é? Por que eu devo ser então? Estava cansada de cobranças e mais cobranças. Não era como o feirante. Cada dia mais as pessoas exigiam dela o que ela não podia, o que ela não queria. Era uma garota, apenas isso. Não tinha de ficar fazendo o papel de nada, nem de filha, nem de mãe, nem esposa ou namorada. Não queria compromissos. Desejava um filho, não agora, mas era algo que desejava. Mas tinha medo. Um medo racional. Ou um medo traumatizado. Não sabia o bem. Não tivera bons exemplos em casa, não tinha sido a filha ideal, não era feliz. A infelicidade era a satisfação alheia, uma voz suave, um tanto efusiva, lhe chamava. Vamos? Madalena era a médica psiquiatra de Alice há dois anos. Já nem sabia mais por qual motivo procurara a médica, mas sabia que as consultas tinham sem tornado a droga de cada dia. Tornara-se uma viciada. Viciada em falar, em atropelar acontecimentos, eu sugar todo o tempo que Madalena tinha a lhe oferecer. Necessitava de alguém que a escutasse, mesmo sendo alguém que recebesse para isso. Alice não ligava. Não queria conselhos, não queria placebos, queria ouvidos, ouvidos físicos. Não era carência afetiva, era apenas carência. Quase sem ao menos dirigir um olhar de cumprimento para a médica, Alice começou a dissertar sobre as desventuras. Imaginava sofrer o mal de toda a humanidade, mas sabia que no fundo, era penas uma garota mimada. Mimada pelas circunstâncias, e não por carinho familiar. Sua família não era nenhum tipo de monstro-familiar. Alice que era diferente demais. Mas sabia que sua família sabia ser infeliz à sua maneira".


.

Nenhum comentário: